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Investigação sugere que guarda costeira grega foi responsável por naufrágio no mês de junho

As tentativas da guarda costeira grega, no passado mês de junho, para rebocar o arrastão de pesca com centenas de migrantes a bordo podem ter causado o naufrágio da embarcação, revela uma nova investigação. Meio milhar de pessoas permanecem desaparecidas.

O barco transportava migrantes da Líbia para Itália e afundou-se ao largo da Grécia a 14 de junho. Sobreviveram 104 pessoas.

Uma investigação conjunta do diário britânico The Guardian, da emissora pública alemã ARD/NDR/Funk e dos gregos Solomon, em colaboração com a Forensis, fornece um dos relatos mais completos até à data sobre a trajetória do arrastão e o naufrágio.A investigação sobre o naufrágio de um navio de pesca que provocou centenas de mortos contradiz os relatos oficiais, revela a incapacidade de mobilizar ajuda e prova que os depoimentos dos sobreviventes foram adulterados.

Foram descobertos novos dados: um navio da guarda costeira atracado num porto mais próximo não foi enviado para o local do acidente; as autoridades gregas não responderam por duas vezes, como anteriormente reportado, mas sim por três vezes às ofertas de assistência da Fontex, a agência da União Europeia para as fronteiras e guarda costeira.

Jornalistas e investigadores realizaram mais de 20 entrevistas a sobreviventes e basearam-se em documentos judiciais e fontes da guarda costeira para construir um quadro de oportunidades de salvamento perdidas e ofertas de assistência que foram ignoradas.

Vários sobreviventes relataram que as tentativas da guarda costeira grega para rebocar o barco acabaram por provocar o naufrágio. A guarda costeira negou veementemente que tivesse tentado rebocar a embarcação.

As últimas horas antes do naufrágio

A noite em que o barco se afundou, a 47 milhas náuticas ao largo de Pylos, no sudoeste da Grécia, foi reconstruída com recurso a um modelo 3D interativo da embarcação criado pela Forensis, uma agência de investigação com sede em Berlim fundada pela Forensic Architecture, que investiga violações de Direitos Humanos.

A Forensis mapeou as últimas horas antes do naufrágio utilizando dados do registo da guarda costeira e o testemunho do capitão da embarcação, bem como trajetórias de voo, dados de tráfego marítimo, imagens de satélite e informações em vídeo gravada por navios comerciais que estavam próximos. Os últimos movimentos do barco contradizem a guarda costeira e revelam incoerências no relato oficial dos acontecimentos, incluído a direção e a velocidade do arrastão.

A investigação concluiu que o barco sobrelotado começou a deslocar-se para oeste ao encontro do único navio da guarda costeira grega enviado para o local. Segundo testemunhos de vários sobreviventes ao Guardian e aos procuradores gregos, a guarda costeira tinha afirmado aos migrantes que os conduziria até Itália – o que contraria a versão oficial de que o arrastão começou a deslocar-se para oeste por sua própria iniciativa.

A averiguação revelou também que a o barco tinha virado para sul e que esteve quase parado durante pelo menos uma hora até que, segundo os sobreviventes, ocorreu uma segunda e fatal tentativa de reboque.

Dois sobreviventes usaram o modelo 3D para descrever o reboque e outros três, que estavam sentados no interior ou no convés da embarcação, descreveram o facto de terem sido impelidos para a frente “como um foguetão”, mas sem que o motor estivesse a funcionar. O que sugere uma tentativa de reboque.

Outro sobrevivente revelou aos investigadores que ouviu pessoas a gritar que o exército grego estava a prender uma corda e que o arrastão foi rebocado durante dez minutos antes de se afundar. “Sinto que tentaram empurrar-nos para fora das águas gregas para que a sua responsabilidade terminasse”, acusou um dos sobreviventes depois de analisar o mapa dos acontecimentos e refletir sobre as suas próprias memórias dessa noite.

Maria Papamina, advogada do Conselho Grego para os Refugiados, uma das duas organizações legais que representam entre 40 e 50 sobreviventes, revelou que foram relatas à sua equipa duas tentativas de reboque. Os documentos do tribunal mostram também que sete dos oito sobreviventes relataram ao procurador civil a presença de uma corda, de um reboque e de um puxão forte, em depoimentos realizados a 17 e 18 de junho.

As circunstâncias exatas do naufrágio não podem ser conclusivas porque faltam provas visuais. Vários sobreviventes afirmaram que os seus telemóveis foram confiscados pelas autoridades e alguns revelaram ter feito vídeos antes do naufrágio. Há também dúvidas sobre a razão pela qual o recém-adquirido navio da guarda costeira, que se encontrava no local, não registou a operação com recurso às câmaras térmicas.

O navio da marinha grega, denominado 920, foi financiado pela União Europeia para reforçar as capacidades da Frontex na Grécia e faz parte das operações conjuntas da agência no país. A UE recomenda que, “se possível, todas as ações levadas a cabo pelos ativos cofinanciados pela Frontex devem ser documentadas em vídeo de forma consistente”.

A guarda costeira afirmou que a operação não foi gravada “porque a tripulação estava concentrada na operação de salvamento”. No entanto, uma fonte afirmou que “as câmaras não necessitam de operação manual constante e que existem precisamente para captar este tipo de incidentes”.

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A presença de homens mascarados, descritos por dois sobreviventes como estando a prender uma corda ao arrastão, está também documentada no diário de bordo, que inclui uma entrada sobre uma equipa de operações especiais conhecida como KEA que se juntou ao 920 nessa noite.

Fontes da guarda costeira revelaram aos investigadores que “não seria invulgar destacar a KEA – normalmente usada em situações de risco, como a suspeita de contrabando de drogas ou armas no mar – dado o estatuto desconhecido da embarcação”. No entanto, outra fonte revelou que a presença da KEA sugeria que o navio deveria ter sido intercetado apenas por razões de segurança e proteção marítima.

“Incompreensível”

Uma fonte descreveu como “incompreensível” o facto de não se ter mobilizado ajuda mais perto do incidente. O 920 foi destacado de Chania, em Creta, a cerca de 150 milhas náuticas do local do naufrágio.

A fonte acrescentou que a guarda costeira tinha navios um pouco mais pequenos, mas ainda assim capazes, baseados em Patras, Kalamata, Neapoli Voion e mesmo em Pylos. O 920 recebeu ordens do quartel-general da guarda costeira para “localizar” o arrastão por volta das 15h00 locais de 13 de junho. O contacto foi finalmente estabelecido perto da meia-noite. Uma testemunha ocular confirmou que um outro navio estava estacionado em Kalamata a 14 de junho e que poderia ter alcançado o arrastão em algumas horas. Deveria ter sido uma situação do género “enviem tudo o que têm”. O arrastão estava a precisar claramente de assistência, acrescentou.

A guarda costeira e a Frontex foram alertadas para o arrastão a 13 de junho. As agências já o tinham fotografado por via aérea, mas não foi efetuada qualquer operação de busca ou salvamento – segundo a parte grega, porque a embarcação tinha reusado assistência. As autoridades receberam um SOS urgente que lhes terá sido transmitido às 17h53, hora local, pela linha de emergência para pequenas embarcações Alarmphone, que estava em contacto com pessoas a bordo.

Ao Guardian duas fontes da guarda costeira revelaram que o reboque era a razão provável para que a embarcação se tenha virado. Em 2014, uma tentativa de rebocar um barco de refugiados ao largo de Farmakonisi custou 11 vidas. Os tribunais gregos ilibaram a guarda costeira, mas o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos emitiu um acórdão condenatório em 2022.

A investigação alega também que os depoimentos dos sobreviventes foram adulterados. Foram prestadas duas rondas de testemunhos – primeiro à guarda costeira e depois a um procurador civil – ambos lidos pelo Guardian. Os testemunhos prestados à guarda costeira por dois sobreviventes de nacionalidades diferentes são idênticos, palavra por palavra, na descrição do naufrágio: “Havia demasiadas pessoas no barco, que era velho e estava enferrujado, foi por isso que acabou por se virar e afundar”.

Dois dias depois, sob juramento perante o procurador civil, os mesmos sobreviventes descrevem incidentes de reboque e culpam a guarda costeira pelo naufrágio. O sobrevivente sírio que, no seu depoimento à guarda costeia, afirmou que a embarcação se tinha virado devido à sua idade e sobrelotação, testemunhou mais tarde: “O nosso barco afundou-se. Creio que a razão foi o reboque do barco grego”.

A União Europeia já pediu uma investigação “transparente” sobre o naufrágio, enquanto a Frontex se sente frustrada, pois ofereceu repetidamente meios às autoridades gregas – um avião por duas vezes e, mais tarde, um drone – mas não obteve resposta. Embora a Frontex esteja a enfrentar crescentes apelos para se retirar da Grécia, o Guardian avança que está a considerar medidas menos drásticas, como a interrupção do cofinanciamento dos navios da guarda costeira grega.

Nove egípcios que se encontravam a bordo do arrastão foram detidos e acusados de homicídio involuntário, naufrágio e tráfico de seres humanos. Os acusados testemunharam que foram feitas duas tentativas de reboque, sendo que a segunda resultou no afundamento.

Na Grécia e no estrangeiro, familiares das vítimas e sobreviventes estão a tentar compreender o que se passou. Três sobreviventes paquistaneses revelaram que tinham voado do Paquistão para a Líbia através do Dubai e do Egito. Dois pensavam que iam voar da Líbia diretamente para Itália e ficaram chocados quando viram o arrastão.

Estima-se que cerca de metade das 750 pessoas que estavam a bordo eram paquistaneses que seguiam uma rota emergente de tráfico de seres humanos para Itália. As autoridades de Islamabad estimam que 115 provinham de Gujranwala, no leste do país, uma região conhecida pelas suas plantações de arroz e de campos de algodão, e profundamente afetada pela crise económica no Paquistão.