Moçambicano demitido pela Kenmare em Moma exemplifica as consequências locais de um fenómeno mundial.
Marcelino Maningue
“Teve gente que chorou, que pegou a pá para bater no seu supervisor,” conta Hélio* sobre as demissões em massa na mina da Kenmare em Moma. Seus olhos vão longe, talvez à procura de uma explicação para o súbito desemprego. Seu drama pessoal reflecte as consequências locais de um fenómeno de abrangência mundial, ou seja, o fim do chamado “superciclo” das commodities que impulsionou os investimentos em mineração e produtos agrícolas.
Outro detalhe revelado é como a falta de sustentabilidade de investimentos extractivos pode ter custos amargos. Fontes sindicais confirmaram a falta de entendimento entre a empresa e representantes dos trabalhadores na Kenmare na tentativa de salvar os empregos. A Kenmare não quis comentar o teor desta reportagem e apenas confirmou o número final de demitidos.
Antes de reportar a história de Hélio é preciso ressaltar alguns pontos importantes. O mercado das comodities é onde são transaccionados todos os produtos e por vezes serviços cuja a procura não depende da diferenciação da qualidade do produto nem da marca. Isto é, produtos que tenham um preço e padrão de qualidade universal, geralmente extraídos ou plantados, tais como: sal, carvão, petróleo, açúcar, cobre, arroz, platina, trigo, ouro, titânio, zircão e outros.
Kenmare
Este mercado tem vindo a verificar uma nova realidade naquilo que já se assume como o grande fim do “superciclo” das comodities, iniciado nos anos 2000 com a subida dos preços, devido principalmente à grande demanda de países emergentes tais como China e Índia, e encerrado por volta de 2013 com a desaceleração do crescimento nesses países e expansão da oferta, inclusive estimulada pelos diversos projectos de exploração lançados nos anos de alta dos preços.
Com isto, esta nova realidade traz consigo novos desafios para países que, tal como Moçambique, que apostam em iniciativas de extracção de recursos minerais como impulsionadoras das suas economias, e também para empresas que se dedicam à extracção de minérios, tal como a Kenmare Moma Mining, que começou a produzir em Moçambique em 2007. Recebeu vários incentivos fiscais que foram alvo de críticas, mas continuou a descontar tributos dos salários de seus funcionários.
A Kenmare Moma Mining é uma empresa pertencente à irlandesa Kenmare Resources e que opera nas areias pesadas de Moma, com alto teor de minerais de titânio tais como ilmenite e rutilo, e minerais de silicato de zircónio, ou zircão. Estes minerais têm uma vasta aplicação na indústria espacial e aeronáutica, mas seu preço decaiu sensivelmente no último ano. Um exemplo é o titânio, que recuou para cerca de US$ 5.58 o quilograma contra quase US$ 9 em Março de 2011.
Oportunidade e desilusão
Durante anos Maputo permaneceu como um dos únicos focos de oportunidade para jovens provenientes das restantes províncias, principalmente as do centro e norte. No entanto, com o avanço da exploração dos recursos minerais, uma vasta gama de oportunidades foi aberta no norte e centro do país. Sendo assim, nos últimos anos, vários foram os jovens que migraram de Maputo para as províncias do norte e centro em busca de melhores oportunidades de modo a que tivessem um futuro promissor.
O nosso entrevistado, que chamaremos apenas de Hélio pois preferiu não se identificar, é um desses jovens que, carregado de sonhos e muitos objectivos por concretizar, muniu-se com esperanças de encontrar o seu “eldorado”. Hoje com 27 anos, ele se aventurou para as terras do norte, onde, com sucesso, conseguiu em Novembro de 2012 uma oportunidade para trabalhar na Kenmare, empresa esta que explora as areias pesadas de Moma, em Nampula.
Mal sabia ele que os ventos mudariam de rumo e o superciclo das commodities chegaria ao fim em 2013, fenómeno este de abrangência internacional que teria consequências imperativas na mudança do rumo da sua vida. Relata ele que quando chegou as acções da Kenmare eram transaccionados a 38 libras esterlinas na Bolsa de Valores de Londres, e que, no entanto, já perto da sua saída, eram comercializadas a 3 libras, num sinal de como os investidores deixaram de acreditar no potencial da empresa.
Tudo isto devido a factores económicos estranhos ao olhar impávido dele, que apenas assistia as acções a caírem durante dois anos seguidamente. “Apenas víamos comentários do pessoal que compra na Banca e de algumas outras pessoas ligadas à empresa, que diziam rest in peace (descanse em paz)”. A partir daí Hélio viu a sua empresa a chegar ao ponto de adoptar políticas de austeridade tão rígidas que nem as canetas conseguiram resistir a tamanho aperto.
Conta ele que a empresa passava por um extremo teste a sua própria sustentabilidade, onde, dentre muitos problemas, destacavam-se o factor mercado, em que as vendas tendiam a descer continuamente, os empréstimos que a empresa fez para poder expandir, as chuvas que haviam interrompido a produção por cerca de 30 dias e também um excesso de trabalhadores cuja a necessidade suscita alguma dúvida.
Como umas das primeiras soluções, a empresa manifestou interesse em não pagar o décimo terceiro, tendo iniciado deste modo conversações com o sindicato, continua Hélio. As conversações começaram em Novembro, quando as vendas baixaram muito. O alvo seria um escalão mais baixo que o dele e que parecia alheio aos ventos bravos a se aproximarem.
“É necessário entender que a maior parte dos locais não tem educação formal, e é difícil dizer que se está com problemas enquanto eles veem uma aeronave a aterrar todos dias, recebem alimentação todos os dias. Eles não percebem nada disto”. Então os funcionários preferiram receber o décimo terceiro, mesmo que isso significasse que a empresa teria de fechar as portas.
Auge da crise
De facto, os problemas da Kenmare agravaram-se tanto que a empresa primeiro anunciou 375 demissões, número depois baixado para 172. A forma como decorreu o processo deixou as pessoas traumatizadas, disse ele.
“Desde Novembro viveu-se essa incerteza, até o final do ano. Vais ao serviço, sabes que possivelmente há uma carta de demissão para ti, ficas lá ate as 12h e senão recebes levantas as mãos e dizes: não foi hoje, quem sabe amanhã. Mas todos dias ia ao serviço e rezava para que não recebesse a carta”. Sua tensão durou do dia 14 de Fevereiro até a manhã de 26, quando finalmente foi ceifado.
No dia seguinte Hélio regressou à casa em Maputo, após quase dois anos longe do aconchego da família e amigos, com uma triste história para contar sobre a sua experiência de vida. História esta que não terminou da melhor forma não só para ele como também para outros colegas. “Receber uma carta de demissão é algo bem difícil, e as pessoas enfrentam isso de formas diferentes, houve quem desmaiou, houve quem pegou na pá e bateu no seu supervisor”, conta sobre alguns episódios dos quais foi testemunha ocular.
Com alguma mágoa, ele acha que tudo poderia ter se evitado se não fosse a arrogância de ambas as partes tanto do lado do sindicato como da direcção, que ele acha que criou barreiras para um possível final feliz. Ainda que no fim alguns tenham chegado a certos acordos, já era tarde para salvar muitos postos de trabalho.
Ao reflectir sobre o passado, Hélio vai se lembrando de algumas sugestões que foram postas na mesa. “Poderiam ter congelado muito antes os aumentos salariais que vinham fazendo, houve até a proposta de, na onda da austeridade, reduzir uma percentagem igual no salário de todo mundo para salvar o emprego de todos, é possível e é prático, eu podia ter aberto mão de 10% do meu salário, se todos abrissem eu aposto que a empresa iria ganhar muito mais”.
Mas nada disso aconteceu. Atendendo a critérios pouco claros, a Kenmare ia anunciando a lista das demissões, num processo em que muita gente sentiu-se injustiçada.
Vida em reconstrução
O jovem que outrora tinha saído em busca de melhores oportunidades agora olha o seu futuro de cabeça erguida, após o regresso a Maputo, pois durante os anos em que esteve fora conseguiu o suficiente para ao menos começar a construir a sua casa, dentro do seu terreno, sonho este que é objecto de ambição de muitos jovens.
Ambiciona também começar um curso de Saúde e Segurança do Trabalho em Nelspruit, com o intuito de, num futuro um pouco distante, voltar a explorar o norte, mas provavelmente longe da Kenmare. Tal como ele narra, “para a empresa onde estive não, saí magoado, sinto que foram injustos, não a empresa em si mas a forma como tudo correu, sinto que a lei não nos protegeu”.
Enquanto o futuro não chega, pretende o mesmo explorar alguma actividade comercial. “Agora quero me reinventar, quero criar meu próprio negócio, há muitas oportunidades na área do comércio”.
No final da entrevista, sorrindo, mostra Hélio uma vontade incansável de vencer. E até prevê que a Kenmare acabe por ultrapassar os seus problemas, com base nas perspectivas de longo prazo da mina em Moma. “Acredito que a Kenmare vai superar e voltar a contratar, infelizmente não estarei lá”, diz. Mas o sorriso acaba por se mostrar passageiro, porque logo depois levanta a voz para de novo destilar amargor, lembrando da parca indemnização que recebeu, de apenas seis dias para os dois trabalhados: “O nosso país nos traiu. Venderam-nos barato, igual aos recursos naturais.”