Internacional O cientista que irrita Donald Trump

O cientista que irrita Donald Trump

Desde o início da pandemia de covid-19 que tem havido tensões entre Anthony Fauci, o médico à frente do National Institute for Allergies and Infectious Diseases, e a administração Trump. Com 34 anos no lugar, Fauci, um nativo de Brooklyn (ainda tem claramente o sotaque) que enfrentou a SIDA e várias outras epidemias, tem uma devoção científica pelos factos e uma reputação de falar directo.

Características que é inevitável entrarem em conflito com um Presidente que distorce a realidade para apresentar uma imagem positiva de si mesmo.

Durante as aparições públicas de ambos nos meses iniciais da pandemia, Fauci várias vezes não confirmou afirmações erradas do Presidente dos Estados Unidos – por exemplo, sobre a alegada eficácia de certos medicamentos. Nalguns casos, contrariou-as diretamente. A irritação de alguns aliados de Trump foi ao ponto de defenderem a demissão de Fauci, em posts que o presidente ‘retweetou’. Mas o que agora aconteceu vai para além disso.

Numa altura em que os alertas de Fauci se têm confirmado dramaticamente, com as novas infeções a roçarem as 70 mil em certos dias, o principal conselheiro de Trump em assuntos comerciais, Peter Navarro, entendeu distribuir à imprensa uma lista de erros alegadamente cometidos por Fauci ao longo da sua carreira. O gesto é tão insólito e as afirmações tão enganosas – com citações fora de contexto, por exemplo – que mesmo senadores republicanos normalmente indefectíveis do presidente vieram a terreiro defender Fauci.

Pela sua parte, o cientista, numa entrevista publicada na quarta-feira na revista “The Atlantic”, sugeriu que nem vai tentar compreender as motivações de Navarro, o qual, segundo disse, “está num mundo próprio”, embora não esteja sozinho nas suas posições. Outro responsável pela gestão da pandemia na administração Trump também acusou Fauci de “ter um foco estreito na saúde pública”.

Durante a entrevista àquela publicação, Fauci considerou “bizarro” que membros do governo o ataquem e disse achar que isso não é bom para Trump. “Quando a sua equipa divulga algo como isso e toda a comunidade científica e a imprensa contestam, em última análise isso prejudica o Presidente”, disse o imunologista. Porém, estando no cargo há 36 anos e tendo lidado com nada menos do que seis presidentes diferentes, Fauci sabe que as questões políticas podem interferir com a ciência. E também sabe que nunca houve um Presidente para quem fosse mais difícil trabalhar do que Donald Trump.

HUMILHADOS E DESPEDIDOS

“Everything Trump Touches Dies”, diz o título de um de muitos livros já publicados sobre a presidência de Donald Trump. Esse é escrito por um estratega republicano e a frase resume o que aconteceu a uma longa série de altos funcionários, desde ministros e chefes de gabinete a porta-vozes e assessores, que aceitaram ir trabalhar para o atual Presidente norte-americano e acabaram não só despedidos, como publicamente humilhados.

Um dos exemplos mais notórios foi o de Jeff Sessions, o primeiro senador republicano a apoiar a candidatura presidencial de Trump numa altura em que o multimilionário era mal visto dentro do partido. Sessions foi recompensado com o posto de secretário da Justiça, mas caiu em desgraça junto de Trump quando se recusou a supervisionar a investigação sobre a interferência russa na campanha presidencial de 2016 – ou seja, quando recusou participar num ‘cover-up’.

Ao fazer aquilo que as normas impunham – o próprio Sessions tinha tido contactos com os russos, e as revelações de que havia mentido sobre isso desqualificavam-no irremediavelmente para tratar do assunto -, começou a ser repetidamente atacado por Trump, tendo sido despedido após as eleições intercalares de 2018. Este ano procurou recuperar o seu lugar no senado, ao qual tinha renunciado para ir para o governo, mas Trump apoiou o seu rival nas primárias republicanas e Sessions perdeu. Para completar a (auto)humilhação, fez anúncios de campanha em que aparece como um fervoroso apoiante de Trump, chegando a enfiar o famoso boné MAGA na cabeça.

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Outros antigos membros da administração escreveram livros – o caso mais falado é o do antigo assessor nacional de segurança, John Bolton – e outros mantiveram-se em silêncio. Mas nenhum deles escapou com a sua reputação completamente intacta. Ao trabalharem para um Presidente que mente e usa retórica divisiva, mesmo servidores públicos veteranos, incluindo generais, ficam perante um dilema. Se se calam quando Trump diz algo que os indigna, tornam-se cúmplices pelo silêncio. Se falam, arriscam-se a ser mandados embora, substituídos por alguém que poderá não ter a benéfica influência moderadora que eles pretendem ter.

FAUCI GARANTE QUE NÃO SE VAI DEMITIR

Anthony Fauci está habituado a ser publicamente contestado. Durante a explosão da SIDA nos anos 1980, quando tentava convencer o governo sobre a gravidade da situação, o ativista gay Larry Kramer chamou-lhe publicamente assassino pela sua suposta negligência em relação à crise. Kramer disse mais tarde que, se houve um herói ali, foi Fauci. Este, por sua vez, reconheceu que os alertas de Kramer tinham ajudado. Os dois acabaram amigos.

O que é diferente agora é que há uma administração americana a tentar menosprezar a situação, por causa das eleições que vão ter lugar em novembro próximo. Trump quer desesperadamente poder dizer que as coisas estão bem, sobretudo a nível económico, mas as medidas que promove para reabrir a economia contribuem para agravar a crise e, portanto, para levar a novas medidas de encerramento que tornam a bloquear a economia. Isto tem sido visível em estados como a Flórida, o Texas e o Arizona, mas também a Califórnia, que os republicanos não controlam mas onde a reabertura dos bares e de outros tipos de atividades sociais tem contribuído muito para fazer subir o índice de infeções.

Na entrevista à “Atlantic”, Fauci repete as recomendações habituais: máscara, distanciamento social, lavar as mãos (pela sua parte, diz que as lava umas cem vezes por dia). Evitar grandes ajuntamentos. Fechar os bares – um ponto que ele enfatiza com particular veemência.

Acima de tudo, insiste, os estados devem cumprir as várias fases de reabertura, não saltando etapas, isto é, não permitindo o recomeço de certas atividades enquanto os índices não estiverem a níveis que o permitam e não se verificarem outras condições. Foi o desrespeito por essas etapas que levou à atual evolução dramática, que pode conduzir a cem mil novos casos de infeção por dia no país, segundo explicou recentemente.

É o tipo de aviso que o Presidente e os respetivos assessores económicos não gostam de ouvir. Mas o vírus é alheio à política e, conforme Fauci lembra, só quer infetar pessoas. Pela sua parte, garante que não se vai demitir. Aos 79 anos, a trabalhar cerca de 20 horas por dia, o que não quer é distrair-se com aquilo que vê como trivialidades políticas.

“O problema é demasiado importante para eu entrar nesse tipo de pensamentos e discussões”, diz à “Atlantic”. “Só quero fazer o meu trabalho. Sou realmente bom nele. Acho que posso contribuir. E vou continuar a fazê-lo”. Aliás, Trump não poderia despedi-lo por si mesmo. O processo teria de passar pelo secretário da Saúde, Alex Azar, e está longe de ser líquido.

Com décadas de experiência a navegar obstáculos políticos e uma maioria dos americanos a apoiá-lo – em matéria de pandemia, os índices de aprovação de Fauci nas sondagens estão em contraste com os do Presidente, não vai ser fácil livrarem-se do especialista, se algum dia tentarem.