Dezenas de moradores do bairro de Chirangano, na província da Zambézia, “desalojaram” alguns mortos no cemitério de Muthétua e no sítio onde havia campas edificaram residências. Há outras dezenas de famílias que coabitam com sepulcros de desconhecidos nos seus quintais. Este facto, visto com indiferença pelas autoridades locais, para além de provar que a disputa de espaço cedido para o descanso eterno dos mortos é cada vez mais constante e repulsiva, por causa da alegada falta de talhões para habitação, mostra uma tendência de desrespeito grosseiro da morte e dos lugares reservados a inumações.
As pessoas que coabitam com cadáveres debaixo da terra, a poucos metros das suas varandas, já consideram a situação normal. Elas contaram-nos, de viva voz, que até tratam os mortos por tu. “Antigamente sentia um arrepio, à noite não podia ir à casa de banho e comia com dificuldades mas agora estou acostumado a conviver com os mortos diariamente”, afirmou Gabriel Tavares. Enquanto ninguém toma a decisão de refrear este problema, a luta desenfreada pela sobrevivência e procura de terrenos talhões para fixar habitação sem se observar as regras elementares de urbanização, faz com que se “desafie” o sagrado.
Exemplo disso, é o facto de a invasão de terreno destinados a enterros estar a ganhar contornos alarmantes também em Nacala-Porto, sobretudo nos bairros periféricos, onde supostos investidores aliciam os líderes comunitários e alguns funcionários da edilidade com míseros valores monetários com o intuito de, em conjunto, ameaçarem a população, enfraquecê-la e depois destruir as campas nas quais jazem os restos mortais dos seus familiares.
Refira-se numa das nossas edições, veiculámos que essas acções são frequentes nas zonas do Intupai, Quissamajulo e Triângulo. Neste último, nos quarteirões 13, 14,15 e 16, das mais de 300 campas destruídas somente cinco corpos é que foram exumados para o cemitério municipal alegadamente por serem restos mortais de antigos combatentes. Os restantes não tiveram um tratamento digno por serem de desconhecidos.
Além de as campas do cemitério Muthétua não meterem medo a ninguém, há indivíduos que acreditam que são túmulo sem nada. No total são mais de oito mil famílias que vivem no bairro de Chirangano, porém as delimitações da área para a construção de domicílios e sepulcros são desconhecidas. Várias residências foram erguidas sobre túmulos.
O @Verdade apurou que o cemitério em causa, cuja parte do “campo” foi invadida por populares idos de vários pontos da cidade de Quelimane, existe desde a década de 50 mas ainda recebe corpos diariamente, pese embora reste muito pouco espaço para inumações. Aliás, há quem nos disse que, devido à exiguidade de lugares, os jazigos que não beneficiam de limpeza há bastante tempo são destruídos aleatoriamente, sem consultar a ninguém, por aqueles que pretendem enterrar os seus ente queridos.
Para além de casas onde há campas nas varandas, a distância que separa os sepulcros e as habitações não ultrapassa os cinco metros. Em algumas regiões da cidade de Nampula, em particular, e do país, em geral, o sepulcro é considerado um sítio respeitado, principalmente para os menores. Entretanto, em Muthétua, as crianças brincam nas campas como se estivessem num parque infantil. A edilidade parece ignorar o problema, uma vez que não faz nenhum esforço para construir um muro de vedação.
Edgar Adelino, de 25 anos de idade, reside em Chirangano há treze anos. Ele é um exemplo claro daqueles que “desdenham” os túmulos. A sua cozinha e as campas estão separadas apenas por flores, as quais foram plantadas para delimitar o seu talhão e o lugar em que se depositam mortos. O nosso interlocutor disse que construiu naquele no cemitério por causa da falta de terreno, pois, à semelhança do que acontece em vários pontos do território moçambicano, na cidade de Quelimane há falta de espaços devidamente parcelados para edificar habitações. Há uma guerra titânica para se conseguir um sítio para o efeito.
Edgar Adelino assegurou-nos que não está preocupado com o facto de estar a “disputar” espaço com os defuntos, mas sim, indignado com a proliferação de estabelecimentos de venda de bebidas alcoólicas, de tratamento de cabelo e barbearias ao redor do cemitério de Muthétua. Na tentativa de angariar clientes, os proprietários desses empreendimentos tocam música num volume ensurdecedor durante os funerais. Ninguém respeita o sofrimento das famílias que se fazem àquele sepulcro para depositar os restos mortais dos seus ente queridos.
“No bairro de Chirangano há uma procura desregrada de talhões para a construção de casas é de tal sorte que os munícipes exumam corpos com o objetivo de habitar nos mesmos sítios. Algumas pessoas enterram os seus parentes sobre campas alheias porque já não restam espaços desocupados para novos funerais. E há cães vadios que circulam por aqui”.
Num belo dia, Edgar Adelino encontrou restos mortais quando estava a abrir um buraco no seu terreno com o propósito de obter areia para maticar a sua residência. Devido ao susto, ele recorreu às autoridades tradicionais, onde apresentou o problema, o qual foi resolvido com uma cerimónia de evocação de espíritos dos antepassados (do falecido) e pedido de perdão supostamente por ter interrompido o descanso eterno de “alguém”.
José Sunguilar, um idoso de aparentemente 70 anos de idade, vive igualmente no bairro Chirangano com a sua família há quinze anos. De acordo com ele, o cemitério de Muthétua já não tem lugar para inumações. As autoridades municipais deviam intervir para estancar o caos que se vive na zona. Há um desrespeito total da morte. O ancião contou-nos ainda que não se sabe quais sãos os marcos que separam o terreno habitacional do reservado aos funerais. Por vezes, quando chove é normal encontrar ossos humanos a flutuarem em alguns quintais.
O cemitério deve ser encerrado
A população de Chirangano exige que o sepulcro de Muthétua seja definitivamente encerrado e que se reassente as pessoas que se encontram nas suas imediações, sobretudo as que coabitam com campas nos seus quintais.
Todavia, Luís Jaime, régulo do terceiro escalão naquela zona, indicou que não existe nenhum plano para travar o caos que se vive no local. Por sua vez, o responsável do cemitério, Ribeiro Uachote, de 65 anos de idade, disse que na altura em que se construiu o cemitério não estava previsto que os talhões à sua volta fossem ocupados a ponto de o espaço reservado a enterros fosse “assaltado”.
Na altura em que o talhão começou a ser ocupando paulatinamente por casas e de forma desordeira, alguns indivíduos transferiram-se para outros bairros porque já não conseguiam viver em condições idênticas as que agora inquietam os moradores de Chirangano. “Há habitações erguidas sobre as campas”, reiterou Ribeiro Uachote, para quem uma das formas de conter os desmandos que acontecem, neste momento, é vendar a área do cemitério, porém, não há dinheiro para o efeito.