Economia Banco Mundial admite culpa no fiasco do sistema ferroviário da Beira

Banco Mundial admite culpa no fiasco do sistema ferroviário da Beira

Banco Mundial admite culpa no fiasco do sistema ferroviário da Beira
O Banco Mundial reconhece que tem uma grande dose de culpa pelo fracasso do projecto de reabilitação do sistema ferroviário da Beira, na província central de Sofala, em Moçambique.

O referido projecto, concebido em 2003, visava a reabilitação da Linha Férrea de Sena, que liga a cidade da Beira à bacia carbonífera de Moatize, na província de Tete, e a Linha Férrea de Machipanda, que liga a Beira ao Zimbabwe.

O mesmo previa a concessão da gestão de ambas as linhas férreas à Companhia dos Caminhos de Ferro da Beira (CCFB), onde o consórcio indiano Rites and Icon International (RICON) detinha 51 por cento, sendo os restantes 49 por cento pertencentes a empresa pública Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM).

Sendo a RICON o accionista maioritário, deveria assumir a responsabilidade de reconstruir a Linha de Sena (que deixou de funcionar em 1983, devido a sabotagem perpetrada pela Renamo, na altura movimento rebelde e que contava com o apoio de extinto regime do apartheid), e reabilitar a Linha de Machipanda.

Inicialmente, o Banco Mundial estava muito entusiasmado com o projecto, tendo desembolsado um empréstimo no valor de 104 milhões de dólares. O consórcio RICON ganhou o concurso público, supervisionado pelo próprio Banco, que aceitou a concessão do projecto àquela companhia indiana.

A concessão do contrato entre o governo e a RICON/CCFB estipulava que a reabilitação de todo o sistema ferroviário deveria estar concluído até Janeiro de 2009, e que a RICON seria responsável pela gestão da CCFB, bem como o principal empreiteiro para a reconstrução da Linha de Sena, incluindo as pontes.

Contudo, logo no início as autoridades moçambicanas e os CFM começaram a manifestar o seu alarme, pois sistematicamente a RICON continuava a falhar os prazos, e a qualidade das obras não respeitava os padrões técnicos.

Os CFM e o engenheiro independente contratado para acompanhar o curso das obras, advertiram sobre a ocorrência de irregularidades, mas o Banco Mundial preferiu remeter-se no silêncio – ou seja, a unidade do Banco responsável pela supervisão dos projectos limitou-se a ignorar estas advertências.

Enquanto isso, a RICON alegava que não seria capaz de concluir a reabilitação da Linha de Sena até Janeiro de 2009 por causa das cheias registadas no Vale do Zambeze em 2007 e 2008. Por isso, o governo acabou por conceder a RICON um período adicional de seis meses.

Infelizmente, o novo prazo também acabou por expirar, e não se vislumbrava a conclusão da Linha de Sena. O governo ainda tentou, em vão, passar a gestão da CCFB para os CFM, mas a RICON acabou por usar a sua maioria no Conselho de Administração daquele consórcio para inviabilizar o processo.

Em 2010, quando o presidente moçambicano, Armando Guebuza, fez uma visita de estado a Índia, aproveitou a oportunidade para discutir a transferência da gestão da CCFB da RICON para os CFM. Segundo o ministro moçambicano dos transportes, Paulo Zucula, o governo indiano concordou com a proposta, mas a RICON continuou a mostrar resistência. Finalmente, em Dezembro de 2010 o governo moçambicano decidiu rescindir o contracto com a RICON.

A 27 de Junho do corrente ano, o Banco Mundial publicou o seu Relatório dos Resultados e Conclusão da Implementação do projecto (ICR), um documento que acaba acusando os funcionários daquela instituição financeira envolvidos no projecto. O relatório descreve os resultados do projecto como “insatisfatórios”, o risco da implementação do projecto como “substancial”, e o desempenho do Banco também como “insatisfatório”. O desempenho do mutuário (no caso vertente o governo moçambicano) é descrito como “moderadamente insatisfatório”.

Os maiores objectivos do projecto nem de longe foram alcançados. Aliás, o objectivo inicial do projecto previa que a Linha de Sena deveria ter a capacidade de manusear um milhão de toneladas de carga por ano até finais de 2009. Na verdade, a linha só iniciou o tráfego de carvão a 8 de Agosto de 2011, com 266.000 toneladas por ano, que corresponde a apenas 27 por cento do volume inicialmente planificado, com a agravante de ter ocorrido 20 meses após o prazo inicialmente acordado.

O tráfego internacional na linha de Machipanda deveria subir de 480.000 toneladas por ano em 2004 para atingir 650.000 toneladas em 2009. Contrariamente, a capacidade da linha reduziu para 387.000 toneladas em 2011.

“O potencial para o tráfego nesta linha é bom (e a prova disso é o aumento do tráfego rodoviário), mas as fracas infra-estruturas impedem a linha férrea de explorar o máximo o seu potencial”, refere o ICR.

Com uma extensão de 317 quilómetros, toda a linha de Machipanda já deveria ter sido reabilitada. Porém, nem um único quilometro beneficiou que qualquer melhoria. “Não houve nenhuma reabilitação e muito pouca (ou nenhuma) manutenção foi feita durante o período de concessão”, ressalta o relatório. “A linha de Machipanda degradou-se ainda mais e, na verdade, está em piores condições comparativamente ao início do projecto”.

De um modo geral, previa-se uma melhoria substancial no sistema ferroviário da Beira. Por exemplo, a percentagem do percurso da linha férrea que se encontra temporariamente sob restrições deveria ter reduzido de 10 por cento em 2004 para dois por cento em 2009. Contrariamente às expectativas a percentagem acabou aumentando para 16,6 por cento em 2011.

Com a deterioração do conflito entre a RICON e as autoridades moçambicanas, a Unidade de Implementação do Projecto do Banco Mundial (PIU, sigla inglesa) acabou por se posicionar do lado da RICON, apesar da existência de evidências concretas de que o consórcio indiano estava a violar as suas obrigações contratuais. “Não obstante estes atrasos documentados, o empreiteiro nunca chegou a ser penalizado”, notou o relatório.

Esta não foi uma falha dos moçambicanos – o relatório acrescenta que “foram ignorados todos os pedidos dos CFM à PIU para tomar medidas contra o Empreiteiro pela má execução das obras”.

Um dos exemplos mais chocantes foi quando a RICON foi autorizada a relaxar as especificações dos balastros que deveriam ser usados na Linha de Sena não obstante os protestos dos CFM e do engenheiro independente.

Ademais, “os melhores engenheiros foram mandados regressar prematuramente pela Concessionária (CCFB) e, subsequentemente, substituídos por pessoal incompetente, com a aprovação da PIU. Apesar dos repetidos protestos dos CFM e do governo moçambicano, nenhuma medida foi tomada para alterar estas decisões”.

Os funcionários do Banco Mundial que se encontravam no terreno apenas se limitaram a encobrir o problema. Por isso, o relatório quase que acusa os mesmos de terem mentido à sede do Banco.

“Surpreendentemente, todos os relatórios de supervisão do Banco durante a fase crítica (2005-2010) consideram o projecto de ‘satisfatório’ ou ‘moderadamente satisfatório’. Apesar da correspondência virulenta entre as partes do contrato, bem como a persistência de relatório negativos do engenheiro independente, nunca houve uma revisão da avaliação do projecto e, como consequência, não foi tomada nenhuma medida correctiva”.

O relatório concluiu que os funcionários do Banco Mundial não tinham a mínima ideia daquilo que estavam a fazer – no relatório esta referência é feita de uma forma mais diplomática: “A equipe de supervisão do Banco não reunia os requisitos de aptidões em engenharia e competência para fazer um juízo correcto das implicações das questões que foram levantadas pelo engenheiro independente”.

Havia “discrepâncias consideráveis” entre os Relatórios de Execução elaborados pelos funcionários do Banco Mundial e os relatórios do engenheiro independente. Por isso, nos finais de 2007, quando os funcionários do Banco previam com satisfação que a primeira fase da Linha de Sena estaria operacional no início de 2008, o engenheiro independente advertia que seria impossível cumprir os prazos estabelecidos.

O Banco Mundial apenas se apercebeu da gravidade do problema em 2010, após a mudança no pessoal de supervisão e de gestão do Banco. Contudo, era demasiado tarde porque o dinheiro já havia sido desembolsado.

Houve uma oportunidade para inverter o curso dos acontecimentos na revisão a médio prazo em Junho de 2008. Nessa altura, o projecto já havia ultrapassado o custo inicialmente orçamentado em 50 milhões de dólares, e a construção estava atrasada oito meses. Mas a equipe do Banco justificou que o aumento dos custos era “compreensível”.

O relatório nota que “ao invés de resolver a incompetência do Concessionário, que era o maior obstáculo, a revisão a médio prazo atribuiu ao fracasso nas negociações das tarifas do carvão (um desenvolvimento relativamente recente) e à ameaça da rescisão do contracto pelo governo como sendo os maiores riscos para a continuidade do Projecto. Esta foi uma oportunidade perdida para fazer mudanças e redireccionar o Projecto”.

De um modo geral, a mensagem do relatório é clara – após um atraso de dois anos e um custo adicional de 50 milhões de dólares, os principais objectivos do projecto não foram alcançados. A Linha de Sena ainda não está a manusear o volume de tráfego que dela se esperava, e o estado da Linha de Machipanda está em piores condições comparativamente ao início do projecto.

O ICR manifesta a sua preocupação com o fracasso da concessão CCFB pois “poderá desencadear uma percepção negativa sobre as parcerias público-privadas em Moçambique, com repercussões noutros sectores ou mesmo noutros países da região”.

O Banco continua ideologicamente comprometido com as parcerias público-privadas, mas outras pessoas poderão indicar o Projecto Ferroviário da Beira como sendo mais um exemplo recorrente em parcerias desta natureza onde o sector público assume o risco, enquanto o parceiro privado desaparece com os lucros.